Faz chover
"Falta muito pouco para você mergulhar nas trevas para sempre." Elben Lenz César
A chuva havia cessado, alguns poucos pingos ainda manchavam o vidro da janela do quarto da garota de trança no cabelo longo. O céu ainda estava escuro como se as nuvens tivessem medo de sumirem de repente, era óbiva a alegria das árvores em ver o água fresca vinda do céu para lhes alimentar e também era evidente a escuridão do mundo daquela jovem que observava as nuvens pararem de chorar.O quarto era amplo e retangular, com uma cama no canto esquerdo bem embaixo da janela, o guarda roupa branco ficava na direção oposta e uma pequena estante de livros ficava na fernte da cama como se convidasse a garota a largar a observação para começar a ler e se encantar com algum mundo submerso pelas páginas amareladas. Ela, a garota, era jovem, tinha 17 anos e usava uma camiseta larga com uma calça legging que usava para dormir, estava com uma trança nos cabelos claros e com alguns pingos de pomada no rosto onde a acne ainda lhe incomodava...
Não fazia nada àquela hora da tarde, só estava observando a chuva e se comparando a ela em sua imensa solidão. Sabia que não estava sozinha, sabia ter companhia e sabia mais ainda que podia conversar com seus pais e amigos sobre qualquer coisa mas ainda assim sentia-se sozinha.
Parecia estar vivendo uma vida falsa, algo errado e não sabia o porquê. Lhe parecia mais certo observar e contemplar a chuva cair do que se preparar para o vestibular próximo ou ler um bom livro que provavelmente caíria na sua prova final de literatura, parecia tudo tão passageiro e sem sentido que ela não queria gastar sua vida com aquilo.
Sonhava em ver algo mais, sonhava em entender o porquê estava ali, sonhava em saber o que deveria fazer da vida e principalmente: sonhava em saber quem ela mesma era; muito mais do que na composição química ou física de seu ser no espaço tempo, ela queria saber o que ou quem a fazia quem ela era, o que lhe dava motivo e fôlego de vida, ela precisava e ansiava por entender o que a tornava ela mesma e tão insegura.
A chuva recomeçou baixinha pintando pequenos desenhos de água no peitoral da janela trancada, ela desviou o olhar para a estante esperando que um livro surgisse de repente e lhe dissesse o que fazer, mas nada aconteceu. Ela fechou os olhos recostando a cabeça no travesseiro que parecia lhe sufocar o coração, nunca fora tão confuso o deitar mas daquela vez ela jurava que sua cabeça, sua alma, necessitava de algo que ela não sabia.
Só abriu os olhos minutos depois quando enorme estrondo fez sua cama tremer e seus pés chacoalharem em cima do edredom florido, procurou perdida pelo quarto o que a fizera tremer, não havia nada. Minutos depois ela voltou a fechar os olhos e calar-se, deixando o seu ego sufocar seu coração.
Então novamente o estrondo tomou-lhe o quarto, mas dessa vez fora tomado por um cheiro irresistível de algodão... Um cheiro forte de paz e a sensação dela lhe tomou o corpo. Abriu os olhos procurando o que cheirava a paz e ao céu, sentiu um deja-vu ao não ver nada mas sentir-se a vontade com o odor, parecia já conhecê-lo. Fechou os olhos novamente sabendo que sua mente lhe pregara mais uma peça.
Os minutos passaram novamente mas o cheiro não sumiu, só aumentou e o estrondo voltou em menos de 15 minutos quando foi unido ao grande rugido: "Filha!"
Relmente assustada ela abriu os olhos convencida de que era real e deparou-se com a mais incrível cena de sua vida, da qual ela nunca mais esqueceria : um enorme e lindo Leão jazia a sua frente, seu pelo era dourado parecendo ter raízes vermelhas de dentro de seu corpo, sua juba parecia mais uma enorme coroa do que qualquer outra coisa, suas patas enormes poderiam destruir exércitos em um passo e seu rabo parecia um cetro majestoso. Seus olhos profundos revelavam sabedoria e muita vida, revelavam amor e muito sofrimento, e quando abriu novamente a boca para rugiu a garota sentiu o coração titubear dentro de si como se pedisse para sair dali para ficar aos pés do Leão Majestoso.
"Filha." ela pôde ouvi-lo dizer com aquela doce voz que parecia formar reinos de eterna beleza a sua volta
- O que você quer ? Eu te conheço?
"Sim filha, você me conhece... Sou seu Pai, e você é a minha filha que me dará muita alegria."
Como que por mágica ela sentiu uma corrente lhe trazer de volta a realidade e sentiu seus olhos finalmente se abrirem, seu coração bateu descompassado ao realmente entender quem estava na sua frente; seu Pai. Pôde vê-lo em sua mente criando o Universo com apenas o seu canto, pôde sentir suas patas modelando seu corpo desde o príncipio, pôde sentir o úmido das lágrimas dele quando ela errava e a alegria ensolarada do seu sorriso qunado acertava. Pôde ver do que era feita e finalmente, depois de 17 anos, pôde sair das trevas para a luz.
- Papai! - a sua voz parecia borrada por uma lágrima que caia sobre sua pele - Papai!
Correu para abraçar o grande Leão, sentiu sua juba colada à trança dela, ouviu sua respiração: inspirando e expirando o doce cheiro de algodão.
- O que faz aqui?
" Eu falei que voltaria para te ver minha pequena, vi que se esqueceu de mim nesses anos... Mas sempre estive esperando por esse momento. Vim tirar você definitivamente das trevas, elas já te consumiram demais por tempo demais. Ouça minha filha, ouça porque direi uma vez: eu vim te levar para casa e voltarei quantas vezes forem necessárias."
Continuou abraçada ao Leão sentindo seu cheiro, sentindo que aquilo era bom demais para ser real. Sentia-se estranhamente renovada por olhar nos olhos daquele que havia sido seu lar por anos.
"Venha filha, venha viver o improvável comigo."
- Improvável?
"Improvável, sim."
- Viver aventuras contigo Pai? Viver tudo que eu li e já desejei?
"Sim minha pequena, e ainda muito mais. Venha, permita-me começar a preparar a minha obra em ti, deixe eu tirar essa escuridão de você e colocá-la de novo na luz."
Sentindo o coração amparado e vendo a margem de uma nova vida com uma nova identidade, renovada e completamente limpa, a garota se afastou olhando bem para o Leão por mais uma vez e então suspirou desfazendo a trança sem ansiedade, então tirou as pantufas que usava e as meias pretas que cobriam os pés brancos do chão frio.
- Solo sagrado. - sussurrou para si mesma como se isso explicasse o que faria, seu corpo lutava contra aquilo mas sua alma exultante gritava-lhe que aquela loucura era a maior prova de sua sanidade.
Tirando as meias pretas e se ajoelhou aos pés do Leão sem tirar os olhos dos próprios olhos suaves do mesmo, estava prostrada como um servo se prostrava diante de seu senhor na época dos feudos: sem nenhum orgulho, nenhuma identidade, nenhuma maldade no sorriso; só a ternura de sua expectativa de chegar cada vez mais perto de casa. Firmou meus joelhos ainda mais forte no chão sentindo que aquela sanidade era a maior delícia de sua vida.
- Eis-me aqui meu Senhor! Onde quer que for, eu irei; e onde morar, eu também morarei. - levantou de leve a cabeça sentindo paz - Eis-me aqui meu Senhor!
O Leão rugiu de modo tão forte e ensurdecedor que por um segundo ela não pôde ouvir mais nada, o estrondo novamente tomou o quarto todo trazendo lágrimas aos olhos da menina, e o cheiro de algodão a deixou na nuvem até ver que o Leão não estava mais na sua frente mas que no parapeito da janela tinha um post-it escrito "Coragem jovem coração! Sê valente!" .
Ela sorriu caminhando de volta para a cama sem colocar as meias pretas de volta para o pé, colocou-se a olhar a janela novamente.
A chuva havia cessado, alguns poucos pingos ainda manchavam o vidro da janela do quarto da garota que antes usava uma longa trança no cabelo. Ela olhava a janela com uma inspiração e concentração impressionante, ninguém repararia no que ela observava nem se chegasse perto o suficiente para tomar a visão dela como sua.
A garota, filha do Grande e Majestoso Leão, contemplava uma flor silvestre que brotava no meio dos tijolos sujos pela chuva do muro que cercava sua casa: ela crescia calma e nova, como se sempre estivera ali, mas ela sabia que aquela flor era mais recente do que o seu fôlego novo.
A chuva havia cessado no mundo dos poetas antigos, mas dentro da garota haviam duas chuvas: uma das torrente de lágrimas que ela derramava, e outra da torrente de perdão e graça que caia-lhe pelo céu do cheiro de algodão.
Tiffany
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